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Gestão pública desburocratizada e ato administrativo: o exemplo do atestado digital

Diego Valois

Em meados de agosto foi noticiado que o Senado Federal instituiu um grupo de trabalho formado por eminentes juristas, cuja coordenação foi incumbida ao Ministro Mauro Campbell, com o intuito de elaborar projetos de Lei vocacionados a promover a celeridade e eficiência no âmbito da Administração Pública. A iniciativa do Senado se trata de uma franca resposta aos anseios da sociedade no sentido de mitigar os nós burocráticos que produzem maior custo para o Estado e sobrecarregam – ou mesmo eliminam – a produção privada.
Esta breve introdução tem por objetivo situar a relevância do tema e o esforço que vem sendo levado a cabo por diversos segmentos da sociedade (governo, academia, institutos e grupos organizados) para efeitos de formular propostas que visem suplantar os efeitos deletérios de uma máquina pública ineficiente e desconectada das efetivas demandas sociais. Neste contexto, é relevante compreender que significativas alterações tendentes a neutralizar a burocracia podem (e devem) ser estruturadas no seio da atividade gerencial da coisa pública, sem que para isso seja necessária a edição de texto de Lei, bastando compromisso com a gestão pública e criatividade na busca de soluções.

O que se pretende defender é que existe um amplo espaço de atuação delegado ao gestor público para promoção de ações que possam propiciar uma prestação estatal de maior qualidade. Ademais, a atitude proativa do gestor público representa antes de qualquer coisa um dever de matriz constitucional derivado do princípio da eficiência, alçado à Lei maior por meio da reforma constitucional de 1998 cujo objetivo foi estimular a atividade administrativa voltada à busca de resultados. Isto significa dizer que o gestor público, no espaço que tecnicamente se chama de “competência discricionária”, tem a missão de formular ações administrativas que resultem na disponibilização de uma utilidade pública com maior qualidade a um menor custo.
Para tanto, requer-se que o gestor público abandone aquela postura reativa, na qual decisões deixam de ser tomadas sob o pretexto de uma eventual lacuna normativa ou, mais ainda, sob o superado argumento de que a Administração só pode agir quando há expressa determinação legal, reflexo da mais comezinha interpretação do princípio da legalidade. Não se defende aqui que se tomem decisões contrárias à Lei, mas que, na sua ausência, o gestor público possa se valer dos princípios que regem a Administração Pública, moldando uma simbiose entre os princípios da legalidade, finalidade, economicidade e eficiência, de modo que as necessidades públicas não sejam desatendidas, tampouco sejam atendidas de forma deficitária.
Um exemplo de como a Administração Pública pode adotar ações inovadoras tendentes a eliminar determinadas burocracias, ainda que tais medidas sejam carentes de legislação específica, refere-se ao sistema implantado pela DERSA – Desenvolvimento Rodoviário S/A, em parceria com o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Estado de São Paulo (CREA-SP) e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, para a emissão digital do Atestado de Capacidade Técnica para obras e serviços de engenharia que tenham sido prestados, inicialmente, no âmbito da referida empresa, porém com a possibilidade de ser expandido para toda administração pública do Estado de São Paulo.
Como se sabe, a comprovação da experiência técnica anterior, realizada por meio do Atestado de Capacidade Técnica, é aspecto dos mais relevantes em se tratando de contratações públicas, pois representa condição determinante para participação do particular no procedimento licitatório que antecede a celebração do contrato público relacionado à obra ou serviço de engenharia.
Ocorre que o modelo vigente para emissão do Atestado de Capacidade Técnica de engenharia é marcado por uma série de trâmites que representam uma verdadeira via crucis a ser enfrentada pelo particular. Ademais, este modelo deveras burocrático serve para facilitar práticas que visam fraudar o atestado, como a manipulação de dados (quantitativos) de modo a torná-lo artificialmente apto para uma específica licitação.

 
No sistema formulado pela DERSA, a emissão do atestado passa a ser feita digitalmente, via rede mundial de computadores, circunstância que, a um só tempo, elimina massivamente os trâmites que eram anteriormente requeridos, bem como confere maior moralidade nas relações público-privadas, vez que afasta o contato subjetivo dos agentes envolvidos no procedimento, evitando-se, por sua vez, a prática de condutas enviesadas.
O exemplo acima expressa clara aplicação do princípio constitucional da eficiência pública realizado no campo da discricionariedade administrativa, é dizer, sem que a implantação de ações eficazes tenha que necessariamente decorrer da expressa previsão normativa; fato que, portanto, corrobora o entendimento de que muito pode ser feito quando a coisa pública é administrada com competência (no sentido de aptidão técnica), boa-vontade e criatividade.
O objetivo desta reflexão foi indicar uma possível obviedade, de que a eficiência pública, notadamente com relação às ações que visam desburocratizar a atividade administrativa, pode igualmente ser alcançada por meio de atos administrativos emanados no âmbito da gestão pública, prescindindo-se, em muitos casos, da edição de Lei. Em que pese não haja propriamente uma novidade no que foi dito, o que se percebe ainda é certa tendência do gestor público em esperar que a atividade legislativa dite os meios de ação, externando ainda uma forte cultura positivista.
Neste ponto o tema aqui discutido ganha importância, pois, se efetivamente quisermos avançar contra o modelo burocrático do Estado Brasileiro, muitas vezes rotulado como kafkiano, faz-se necessário conscientizar a gestão pública do seu compromisso com a eficiência e, mais ainda, da sua prerrogativa para formular soluções e executar atos administrativos que não estejam necessariamente subordinados a um comando legal, mas que, efetivamente, traduzam o espírito da Constituição.

* Diego Valois é coordenador do Comitê de Governança nas Estatais no Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial – IBDEE e advogado em São Paulo.