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Se personagem de Kafka morasse no Brasil, burocracia o teria matado

Dizer que as relações público-privadas no Brasil são kafkianas talvez seja um clichê. Todo mundo conhece a insanidade da burocracia para obtenção de documentos, licenças, autorizações, alvarás e os mais variados tipos de beneplácitos que a gigantesca máquina estatal impõe à vida dos indivíduos.

Mais obscuro talvez seja o impacto dessa desgovernança na ética daquelas relações. Por ser quase impossível ao cidadão comum descortinar os meandros dos processos estatais, há amplo mercado de facilitadores que, menos pela técnica e mais por influência, prometem resultados em troca de certa remuneração, muitas vezes atreladas ao “êxito”.

Se Kafka fosse brasileiro, a maneira mais cruel de matar seu personagem Joseph K. seria, em vez de submetê-lo a algozes, impor-lhe o desafio de obter documentos de certos órgãos públicos. O homem morreria do coração.

Um certo proprietário de imóvel objeto de desapropriação teve a notícia de que a empresa pública expropriante decidiu, em reunião de diretoria, desistir do processo. Porém, o departamento jurídico dela estava demorando muito para manifestar a desistência em juízo. Interessado em liberar-se rapidamente do fardo de um procedimento expropriatório, o cidadão procurou a empresa solicitando cópia da ata de reunião para que ele mesmo pudesse informar o juiz.

Pediram-lhe que protocolasse um requerimento e aguardasse. Trinta dias depois, voltando em busca de novidades, soube que seu “processo administrativo” estava em análise na área técnica. Mas que processo administrativo? Queria apenas a cópia de um documento.

Passados outros trinta dias, descobriu que seu pleito estava no jurídico dependendo do parecer do procurador. Sugeriu ao atendente fotografar a página da ata para acelerar, mas não foi autorizado. Mais 15 dias e 3 despachos depois, recebeu sua famigerada folha. O que provoca esse fenômeno? Inúmeras razões, desde o tamanho da máquina até a estabilidade do servidor público. No meio está a ausência de um procedimento claro de tomada de decisão pelo administrador público.

Por procedimento quer-se dizer um conjunto de etapas organizadas tendo em vista um resultado, sendo o fim mais importante que os meios. Claro que o Estado tem infinitos procedimentos, mas, no mais das vezes, eles não servem ao cidadão, destinatário final da atividade pública, mas sim à própria burocracia. Por isso, oethos (conjunto de valores) dos “processos administrativos” contém intermináveis protocolos, carimbos, despachos e remessas. Defrontados com esse emaranhado, muitos administrados buscam maneiras de “agilizar” as soluções. Essa palavra, quase sempre com conotação negativa, traz consigo condutas que, por vezes, extravasam limites éticos.

Desse modo, uma das maneiras de endireitar as relações público-privadas é pavimentar caminhos retilíneos para a tomada de decisão pelo Estado. Não se trata somente de simplificar, mas principalmente de dar sentido aos procedimentos à luz de objetivos cristalinos, sendo o maior deles atender de maneira plena o usuário da máquina estatal.

Não será mais necessário “agilizar” quando se “deskafkizar” os processos, convertendo o modus operandi da facilitação na ética da transparência. O desafio é enorme, mas o Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (IBDEE) está preparado para dar sua contribuição nesse tema.

KLEBER ZANCHIM

32 anos, é doutor em Direito Civil, professor do Insper Direito, da GVLaw (FGV/SP) e da FIA. É associado e coordenador da Comissão ‘DesKafka’, do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (IBDEE)